Quis abraçar-te. Havia a estrela, e aquela música tão diferente de todas as outras. Havia frio lá fora e tu estavas no aconchego da gruta. Havia ali reis de joelhos, e todos olhavam para ti, e parecia que nada mais existia senão olhar para ti e querer abraçar-te.
Quis abraçar-te porque eras assim pequeno e sem defesa, e os meus braços me pareciam fortes. Porque me tinham dito que eras Aquele que tínhamos esperado; que eras tu o fruto da grande espera. E que ao abraçar-te se abririam caminhos novos, com cores novas; e que veríamos aquilo que antes não podíamos ver; e que conheceríamos a música que tinha estado escondida durante longos séculos.
Quis abraçar-te e estendi os braços e trouxe-te para o meu regaço. A tua Mãe olhava-nos com um olhar que era de orgulho e de encorajamento.
Abracei-te. E beijei-te. Pareceu-me que queria comer-te com beijos e que isso era possível.
E foi então que sucederam muitas coisas que não esperava. Não tinha conseguido deixar de fechar os olhos, e, enquanto te abraçava, senti que estreitava um corpo que se tinha tornado bem maior. Que suava, que sangrava, que tinha sido golpeado.
Estremeci e abri os olhos. Mas já não havia reis, nem presentes; nem eu te abraçava já. Não se ouvia a música. A gruta tinha-se tornado fria, e nas palhinhas estava deitado um leproso.
Saí, a correr, da gruta. Assustado. Onde estarias? Lá fora, a paisagem tornara-se deserta e o sol queimava. Um abutre esperava a morte de uma criança escura, em extremo magra, que, quase deitada de bruços sobre a terra vermelha, não tinha forças para se mexer.
Onde estarias? Continuei a procurar-te - ou a fugir de tudo aquilo? Andei por muitos lugares. Cruzei-me com homens tristes e crianças ocas. Encontrei uma mulher cujo filho partira havia muito e não voltara; e um velho muito velho a quem não deixavam viver na casa da família que fundara. Vi os doentes e aqueles que, tendo saúde, sofriam por dentro qualquer coisa pior que a doença.
E, na minha correria, pareceu-me não ver na terra alegria nem festas, nem fogueiras nas casas. Embora os homens se agitassem muito em ruído e imitação de felicidade, pareceu-me que eram vazias todas as palavras que diziam. E tive pena deles. Toda a Terra era um mar de sofrimento e disparates. Onde estarias?
Sentei-me então numa pedra à beira do caminho, porque estava cansado e não entendia o que tinha sucedido. Porque precisava de pensar. E compreendi que tinha começado a ver aquilo que antes não podia ver, e que era isso o que me perturbava.
Passou o tempo e ainda aqui estou, sentado na pedra, à beira do caminho. Dói-me a cabeça e apenas consegui obter uma suspeita: talvez suceda que estejas escondido de alguma forma no leproso, nos homens tristes, nos doentes, na criança que sofre. E que, fugindo deles, eu fuja de ti. E que, para te abraçar, eu tenha de os abraçar. Tive este pressentimento porque é sempre com eles que me encontro quando te procuro.
Talvez exista um mistério e seja necessária coragem para o entender. Pode muito bem ser que não tenhas vindo para nos oferecer uma festa com presentes, mas para nos confiar uma tarefa: a mesma que escolheste para ti. Dar a vida pelos outros, não foi?
E se eu fosse, devagarinho, até à gruta? Existe valor em dar um primeiro passo. Se eu partir, talvez se acenda uma luz nesta cabeça que me dói; talvez pelo caminho ganhe coragem; talvez consiga, até, abraçar o leproso. Talvez já te possa ver nas palhinhas...
Para viver um grande amor foi publicado em 1962 (Rio de Janeiro: Editora do Autor), 223 p.
Dedicatória: "a Lucinha".
Capa de Renato Vianna.
Há três epígrafes:
"But in my mind of all mankind/ I love but you alone." (Anônimo, "The Nutbrow Maid");
"Amor condusse noi ad una morte." (Dante, "O Inferno")
"The world was all before them, where to choose/ Their place of rest, and Providence their guide./ They, hand in hand, with wand’ring steps and slow/ Through Eden took their solitary way." (Milton, "Paradise lost").
Os poemas são precedidos pela seguinte "Advertência" do autor (não assinada):
Esta coletânea de crônicas, se bem que mesclada a poemas de fato e de circunstância, é o primeiro livro de prosa do A. Tendo exercido o mister de cronista em várias épocas, nos últimos vinte anos, resolveu ele selecionar algumas delas, a instâncias, também, de seus Editores, e vir a público. Há, para o leitor que se der ao trabalho de percorrê-las em sua integridade, uma unidade evidente que as enfeixa: a de um grande amor.
Foram elas publicadas em jornais e revistas vários, de alguns dos quais o A. perdeu o rastro. A maioria, no entanto, saiu em Última hora, no período que vai de 1959 a nossos dias.
Os poemas, muitos dos quais escritos nesse mesmo interregno, visam a amenizar um pouco a prosa: dar-lhe, quem sabe, um "balanço" novo. E situam-se, quase todos, nessa fase do A. que vai de seus últimos dias de Paris, em 1957, onde foi escrito, em julho, "O amor dos homens", até o fim do seu estágio em Montevidéu, em 1960. Dentro, portanto, da experiência do grande amor.
Copiar e ordenar mais de mil crônicas, do que resultou esta seleção, foi obra de D. Yvonne Barbare, secretária do A., cuja competência e dedicação não pode ele deixar de louvar aqui.
Amor
Não confundir o amor com a paixão dos primeiros momentos, que pode desaparecer. O verdadeiro carinho cresce na medida em que os dois estão mais unidos, porque partilham mais. Mas para partilhar é preciso dar. Dar é a chave do amor. Amor significa sempre entrega, dar-se ao outro. Só pelo sacrifício se conserva o amor mútuo, porque é preciso aprender a passar por alto os defeitos, a perdoar uma e outra vez, a não devolver mal por mal, a não dar importância a uma frase desagradável, etc. Por isso o amor também significa exceder-se, fazer mais do que é devido.
(J. L. Lorda)
Limites do Amor
Condenado estou a te amar
nos meus limites
até que exausta e mais querendo
um amor total, livre das cercas,
te despeça de mim, sofrida,
na direção de outro amor
que pensas ser total e total será
nos seus limites da vida.
O amor não se mede
pela liberdade de se expor nas praças
e bares, em empecilho.
É claro que isto é bom e, às vezes,
sublime.
Mas se ama também de outra forma, incerta,
e este o mistério:
- ilimitado o amor às vezes se limita,
proibido é que o amor às vezes se liberta.
Ele quis morrer para arrasar a morte e voltar.
Affonso Romano de Sant'Anna
Se é sem dúvida Amor esta explosão
de tantas sensações contraditórias;
a sórdida mistura das memórias
tão longe da verdade e da invenção;
o espelho deformante; a profusão
de frases insensatas, incensórias;
a cúmplice partilha nas histórias
do que outros dirão ou não dirão;
se é sem dúvida Amor a cobardia
de buscar nos lençóis a mais sombria
razão de encantamento e de desprezo;
não há dúvida, Amor, que te não fujo
e que, por ti, tão cego, surdo e sujo,
tenho vivido eternamente preso!
David Mourão Ferreira, Os Quatro Cantos do Tempo
Olavo Bilac |
Um beijo
Foste o beijo melhor da minha vida,
ou talvez o pior...Glória e tormento,
contigo à luz subi do firmamento,
contigo fui pela infernal descida!
Morreste, e o meu desejo não te olvida:
queimas-me o sangue, enches-me o pensamento,
e do teu gosto amargo me alimento,
e rolo-te na boca malferida.
Beijo extremo, meu prêmio e meu castigo,
batismo e extrema-unção, naquele instante
por que, feliz, eu não morri contigo?
Sinto-me o ardor, e o crepitar te escuto,
beijo divino! e anseio delirante,
na perpétua saudade de um minuto....
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